Olhando o trabalho anterior: Irmãos Safdie
Para aqueles que não estão familiarizados com os irmãos Josh e Ben Safdie, eles são jovens cineastas de Nova Iorque cujos filmes normalmente abordam temas humanistas ou sociais que levam seus personagens ao limite físico e/ou mental. Além disso, eles executam diversas tarefas em suas produções, não se contentando apenas com direção e roteiro, mas também atuando, editando, desenhando o som e por aí vai. Eles estão atualmente “em cartaz” na Netflix com o super popular Joias Brutas, estrelando Adam Sandler, mas eu gostaria de olhar para o filme que passou despercebido pelo público mais casual— ainda que tenha estreado no Festival de Cannes em 2017 e tenha o futuro (ou atual) Batman como protagonista.
Com Bom Comportamento (2017), título representado pela A24, mesma distribuidora/produtora de Moonlight (Barry Jenkins, 2016) e O Farol (Robert Eggers, 2019), eles concorreram a Palma de Ouro após um excelente terceiro longa, Sexo, Drogas e Nova Iorque (2014), que figurou em diversos top 10 da crítica americana ao longo daquele ano. Tanto em “Bom Comportamento” quanto em “Joias Brutas”, os Safdie continuam a explorar uma Nova Iorque sem glamour, em que a cidade como reflexo de um sistema é força muito mais determinante do que o desejo de mudança dos personagens observados.
Agora, vamos focar no filme de 2017.
A primeira cena apresenta muito bem os protagonistas e suas características de forma objetiva mas sem ser didática. Um psiquiatra tenta analisar seu paciente, Nick Nikas (Ben Safdie), a partir de simples perguntas e respostas, como interpretação textual e comparação entre palavras. As dificuldades de Nick são explicitadas pelo close-up no rosto do personagem, revelando um trauma. Ao longo da trama, entendemos de maneira sútil que houve problemas na casa de Nick, onde mora com sua avó e seu irmão, Connie (Robert Pattinson). A paciência do psiquiatra se vai logo que Connie entra na sala; sua personalidade explosiva fica clara pelo uso de um zoom rápido e fechado em seu rosto. Connie discute e força seu irmão a sair com ele. Então, em poucos minutos, não só já conhecemos bem nossos personagens como também somos introduzidos à montanha-russa de emoções que o filme há de se tornar.
A trama é simples e por causa dessa cena extremamente funcional, as motivações e necessidades dramáticas de cada personagem são facilmente compreendidas. Eles vão roubar um banco para fugir da cidade e deixar de depender da avó. Pelo menos esse é o plano de Connie e lógico que dá errado, obrigando Connie a mudar seu objetivo e dando início a uma série de eventos que não decepcionam em suas camadas de ação, humanidade e retrato social.
Vários personagens passam a ganhar importância na trama, pois se tornam obstáculos na jornada de Connie, e é então que Robert Pattinson tem espaço para entregar sua melhor performance até hoje (sim, melhor que em “O Farol”). Ele manipula, briga, foge, seduz; é um show de repertório, mas em momento algum esquecendo o que faz seu personagem cativante: o coração. Lembra muito Sonny, o lendário personagem de Al Pacino em Um Dia de Cão (Sidney Lumet, 1975), cujas decisões questionáveis são negligenciadas pela relação fraternal e convincente que ele desenvolve com outros personagens. A relação entre Connie e Nick é o principal trunfo do filme, pois ainda que eles estejam separados e o filme entregue pouquíssima história pregressa, é possível sentir a confiança que um tem no outro, o carinho e principalmente o sofrimento que ambos compartilharam, a diferença é que Connie pode mascarar sua sensibilidade enquanto Nick, devido a uma deficiência, não.
Todo o elenco é colocado numa posição de vulnerabilidade a partir dos planos fechados e diálogos agressivos e ainda assim nunca duvidamos da credibilidade do que vemos. Destaque para a então novata Taliah Webster interpretando a curiosa adolescente Crystal, que participa de duas das cenas mais intimistas e importantes do filme, as quais apontam para o racismo e machismo invisíveis numa comunidade mais pobre, pois parecem justificáveis enquanto não deveriam ser.
Enquanto A Qualquer Custo (David Mackenzie, 2016) mostrou uma história entre irmãos na luta por uma mudança de vida em meio ao julgamento e consequências morais que a sociedade oferece num formato de faroeste moderno, “Bom Comportamento” oferece um olhar mais alternativo para este mesmo tema, fugindo da sombra do faroeste e embarcando numa explosão de referências, que começam na pop-art e chegam até o cinema de Martin Scorsese — principalmente Depois de Horas (1986). Por sinal, Scorsese entraria como produtor executivo do filme seguinte dos irmãos, mas acredito que você já saiba disso.
Ao longo de seus precisos 100 minutos, os diretores não deixam a peteca cair e contagiam o espectador com um visual vibrante, e mais interessante que nos outros filmes dos Safdie, e sequências de tirar o fôlego não pelo número altíssimo de cortes (como acontece na maioria dos filmes hoje em dia) mas pela relação entre a música de Daniel Lopatin, o prazo estabelecido (clássica ferramenta de roteiro conhecida como ticking clock) e a sensação de perigo constante, afinal, Nova Iorque é a cidade que nunca dorme e não só há muitos policiais nas ruas mas muitas testemunhas também, então não há para onde ir. Ainda assim, o espectador espera ser surpreendido.
Um tanto irônico.
Tal como “A Qualquer Custo”, “Bom Comportamento” começa seguindo a jornada do herói, só que enquanto o primeiro consegue seguí-la até o final de seus 12 passos, o filme dos Safdie foge dela. Se este continuasse a jornada até o final seria apenas mais uma grande história contada através de uma experiência de imersão, mas esquecida depois de horas. A nota amarga ao final é tão injusta para o espectador quanto é para o personagem, pois ambos investem na história que querem acreditar e são frustrados justamente por não terem controle da narrativa.