O paradoxo de Christopher Nolan
Eu prometo que este é um artigo favorável ao cineasta, leia até o final.
Orson Welles, um dos maiores diretores da história do cinema, uma vez se referiu ao cinema como “película dos sonhos” (não tem limites, não tem fronteiras). Estranhamente, essa fala faz parte de uma carta aberta em que ele questiona a obsessão de Hollywood com novos formatos de exibição, como VistaVision e CinemaScope (leia na íntegra aqui).
Por mais que a argumentação faça sentido para época — e seria possível contextualizá-la para a obsessão de Hollywood com o 3D desde 2009 — eu acho um tanto limitante acreditar que a “película dos sonhos” seja prejudicada por novos formatos, por expansões e novas tecnologias. Christopher Nolan se encontra nesse meio termo: um diretor muito imaginativo, crente de que não há fronteiras para o cinema porém crítico dos processos digitais; um diretor que acredita no poder da imagem mas segue condicionando esta à verborragia didática; um diretor corajoso o bastante para propor complexas estruturas de trama, contudo, covarde ao não confiar que seu espectador vá compreendê-las.
Essas características contraditórias são fundamentos de seu cinema e sua trajetória em Hollywood — a qual é de extremo sucesso. Nolan jamais fez um filme ruim, mas ao mesmo tempo, parece que está sempre a algumas mudanças narrativas de lançar uma obra-prima. Veja, por exemplo, “A Origem” (Inception, 2010), um filme extremamente importante para o cinema de ação desta década que se encerra, cujo legado visual é imensurável, mas que fica aquém de seu potencial dramático porque quer explicar antes de existir.
O primeiro ato do filme de 2010 é muito didático (eu disse MUITO didático). São sequências inteiras utilizando a personagem de Ellen Page como dublê de espectador, controlando todas as interpretações possíveis para uma trama sobre SONHOS e assim negando ao público participação na criação de sentido da obra. Só que chega no final e ele se nega a responder uma questão fundamental para a necessidade dramática de seu protagonista.
Deixa o público pensar.
É bastante frustrante, para dizer o mínimo. É como se lhe prometessem o mundo e entregassem apenas um globo terrestre. Qual seria o resultado de um filme assim nas mãos de Spike Jonze, Michel Gondry e outros diretores que parecem compreender melhor o onírico? Dramaturgicamente melhor, provavelmente. Mas aí, não teríamos sequências como essa aqui:
CARAMBA, que sequência, meus amigos! Qual outro cineasta faria algo assim hoje em dia? Por mais que Tom Cruise adore cenas de ação, ele se contenta com o difícil, deixando o criativo de lado. Eu não consigo negar a excelência dessa parte do cinema do Nolan, por isso prefiro olhar para “A Origem” como um filme de ação simples, por mais que se leve a sério demais — diferente dos filmes do próprio Tom Cruise ou até do melhor filme de ação dos últimos 25 anos, “Mad Max: A Estrada da Fúria”.
Alguns críticos vão dizer, porém, que “se um filme não se leva a sério, por que eles deveriam levá-lo?” e para mim, a resposta é bem fácil: porque não há nada errado em se entregar ao entretenimento. Alguém realmente acha que o Howard Hawks levava a trama de “Levada da Breca” a sério? Ou que o Hitchcock fazia o mesmo com a narrativa de “Intriga Internacional” (que o mundo inteiro considerava um suspense mas ele enxergava uma grande piada)? Ambos os filmes são considerados obras-primas hoje em dia.
Não levar algo a sério é se contentar apenas com o valor de entretenimento. E sinceramente, que outro valor há em “A Origem”?
Christopher Nolan é abertamente um discípulo de Stanley Kubrick. Por isso ele tenta fazer de seus filmes experiências autênticas, pautadas no realismo e na ciência, como cultos racionais; o curioso é que ele ignora o humor negro de seu ídolo e também sua obsessão por instigar em vez de explicar, afinal, Kubrick fez dois dos filmes mais discutidos da história do cinema: “2001” (1968) e “O Iluminado” (1980).
Em “Interestelar” (Insterstellar, 2014), Nolan quer claramente fazer seu “2001”, chegando até a homenagear seu herói de algumas formas. A realidade é que o filme é um melodrama espacial que se preocupa mais em criar quebras-cabeças pautados pela ciência do que em atingir seu potencial narrativo, que é mais próximo de Spielberg do que de Kubrick (inclusive, seu irmão mais novo, Jonathan Nolan, escreveu o primeiro rascunho do roteiro pensando em no diretor de “Jurassic Park”).
Para mim, como diretor e roteirista, existem decisões que beiram o ridículo em “Interestelar”; por exemplo, a briga estúpida entre Matthew McConaughey e Matt Damon na segunda metade do filme, que fica muito pior quando ele decide filma-la num plongée, movendo a câmera como se Deus observasse o que acontecesse.
É ridículo porque é uma solução fácil demais, filmada sem qualquer criatividade, dentro de um filme que se acha tão inteligente a ponto de precisar virar um papel pra câmera e fazer um furo, simulando o que seria um buraco de minhoca:
Amigo espectador, somos superiores, por isso precisamos de um momento da sua atenção para explicarmos os seguintes termos…
Sim, o espectador precisa saber o que é isso, mas existem formas mais sutís de demonstrar, principalmente quando a ação há de fazer isso em seguida. Deixa a informação no ar e quando o buraco de minhoca chegar, o público ligará uma coisa a outra. Tomar riscos de forma segura é uma intenção paradoxal.
Toda essa década, em que Nolan teve momentos de protagonista, parece super decepcionante em retrospecto. Em “Batman — O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (2012), Nolan claramente tentou costurar soluções para uma trilogia que precisava do Coringa para terminar. O final funciona porque os atores são muito bons e a trama é coerente, mas quando analisamos a trilogia como um todo, percebe-se que o segundo filme, o MELHOR, fica isolado.
Em “Dunkirk” (2017), Nolan se abstém do cinema fantástico para criar uma experiência viceral (que literalmente me fez passar mal), com poucos diálogos e muita ênfase na inquietação, fazendo um filme pragmático, em que a trilha-sonora só serve para criar tensão — não se mantém sozinha como música (leia meu artigo sobre Ennio Morricone para se aprofundar nisso) mas cumpre uma função “tática” — e a fotografia para causar angústia e claustrofobia. Se você procura num filme uma experiência de guerra, como num video-game, “Dunkirk” é o filme pra você, mas o que você leva disso?
Mas hoje me vi intrigado, em meio à reabertura das salas de cinema: vou ter que esperar pra ver o novo filme de Christopher Nolan na TV? Não poderia. Joguei a toalha e fui na maior e mais espaçosa sala de cinema que aprecio (IMAX, shopping Bourbon) para correr menos riscos. Me sentei na minha tradicional poltrona D12, de cara para a tela, sozinho na fileira, e tentei esquecer os riscos por algumas horas.
Mesmo com tantos problemas no mundo, ainda é prazeroso assistir filmes de alguém que se preocupa em criar algo autêntico e original, por mais que muitas vezes não seja. O que me conectou com Nolan dessa vez foi a paixão pelo cinema, pela experiência comunitária que ele proporciona, desde sua produção até sua exibição. E assim como Christopher Nolan, eu fui contraditório: briguei tanto à favor da manutenção das salas fechadas, mas corri para uma, como refúgio, para ver o filme de um cineasta que tanto critico.
Em “Tenet” (2020) as principais características de Nolan estão presentes. Visualmente, é impressionante; é a “película dos sonhos” — que não tem limite e nem fronteira — filmado em 70mm, com pouquíssimo CGI (que me impressiona ainda mais) e cheio de sequências mirabolantes.
Inclusive, eu achei morbitamente fascinante que vi o filme no mesmo dia que Sean Connery, o primeiro James Bond, faleceu. “Tenet” claramente é influenciado pelos filmes do espião inglês, conseguindo fugir dos clichês óbvios e machistas da famosa série de ação, mas preservando a elegância e natureza exótica da mesma, com direito ao segundo melhor vilão do cinema de Nolan (o primeiro vocês sabem qual é).
Ainda assim: super didático, super verborrágico quando não se há necessidade, a música é totalmente tática e, mais uma vez, Nolan escala o ator certo mas esquece de trabalhar suas melhores características dentro da narrativa: John David Washington é muito charmoso e bem humorado, mas fica com a cara fechada do começo ao fim certamente por orientação, ou falta dela, de seu diretor.
Mas sabe de uma coisa? Dane-se. Eu amei “Tenet”.
O erro cometido por mim foi achar que esses problemas seriam corrigidos ao longo da carreira do diretor britânico, como se ele fosse perceber e se incomodar, mas na verdade, esse é Christopher Nolan. Ele não é aspirante a Kubrick, ele não é uma versão medíocre de Steven Spielberg, ele é único e, desse jeito, é importante para o cinema atual. A questão é se aceitamos ou não, e essa escolha é individual.
Sim, muitas vezes é irritante, frustrante, mas no fim do dia, quantos cineastas conseguem fazer o que ele faz? Ninguém quer ir tão longe para recriar um buraco de minhoca, ou filmar um ataque aéreo, ou causar a colisão entre um avião GIGANTESCO e um prédio. Quem que consegue 200 milhões para produzir um filme que não faz parte de franquia alguma, cujos protagonistas não são estrelas inquestionáveis? É impressionante.
Apesar de não confiar na interpretação de seu espectador, ele entende que o mesmo reconhece a diferença entre transformar o inimaginável em realidade e apenas aceitar que só se pode ilustrá-lo. Nolan quer provar para você que o que estás vendo é verdade e é possível. Isso é paixão, compromisso, arte. E arte inspira, ainda que cause furor.
Um tanto paradoxal. Felizmente no cinema, o impossível é apenas uma palavra.