O Evangelho Lúgubre

(ou como igrejas preferem compactuar com o inimigo do que abrir mão de alguns costumes)

Nate Buzelli
11 min readMar 4, 2021
Image by Alexandra ❤️A life without animals is not worth living❤️ from Pixabay

ATENÇÃO: O texto à seguir pode conter ironia.

A igreja e o estado. Uma história de amor e ódio que começou há muito tempo atrás, mas jamais parece se cansar de oferecer novos capítulos. Ontem estava eu, em casa, assistindo a um filme de 1964 chamado “Becket” (1964, Peter Glenville), o qual conta, resumidamente, a história de amizade transformada em rivalidade entre o rei inglês Henry II e Thomas Becket, o qual foi nomeado arcebispo pelo rei apenas para tomar o lado da igreja numa recorrente briga por poder. Você para uma hora pra pensar: estado corrupto, igreja corrupta, como é possível ser bom em meio à tudo isso? Impossível, por isso Becket foi assassinado.

Não estamos mais na Idade Média, a igreja passou por inúmeras reformas — sendo a principal, a protestante — e hoje este poder não está mais centralizado no catolicismo. Mas desde a Idade Média a igreja não tinha um papel tão importante na propagação e normalização da violência em meio à população.

Na última segunda-feira, dia 1º de março de 2021, em meio ao momento mais crítico da pandemia até agora (inacreditável, mas não dá mais pra ficar chocado), João Dória, governador de São Paulo e excelente “marketeiro”, assinou um decreto que reconhece as atividades religiosas como serviço essencial no estado. Sim, a medida não muda muito, porque as missas e cultos já eram permitidos na fase vermelha, mas ainda assim, é importante que Dória faça da medida uma manchete para conseguir mais apoio da massa religiosa.

É um absurdo, entretanto, que líderes, ou melhor, instituições que pregam a vida tenham a cara de pau de defender que os cultos sejam realizados quando não existe a menor necessidade. Vamos focar nas igrejas evangélicas, as quais defendem que todos têm livre-acesso ao criador (uma vez que o véu foi rasgado) e por isso podem cultuá-lo dentro de suas próprias casas, sem necessidade de um intermediário (um padre, por exemplo, para ouvir as confissões). Isso é uma pontinha do iceberg gigantesco, fundamentado em hipocrisia e elitismo, que fundamenta a igreja evangélica hoje em dia.

A própria teologia tem entrado numa espiral tóxica já faz anos no Brasil. Desde que o tele-evangelismo se tornou uma força no país, já introduziu nomes como Edir Macedo, Silas Malafaia, Valdemiro Santiago entre outros que só apresentam problemas e representam o que há de pior na religião hoje em dia: fundamentalismo, manipulação, exploração por capital e até corrupção.

Todos os nomes citados acima são parte de um movimento neopentecostal, sectário, relativamente moderno, nascido no final da década de 1970, só que se engana quem acha que as igrejas desse movimento são as únicas a causar problemas e agirem contra o que pregam. Para que eu possa, então, expressar melhor a minha visão quanto a tudo isso, vou começar do começo.

Eu cresci dentro da igreja Metodista, em São Paulo. Minha família é protestante, eu fui batizado bem cedo (recém-nascido) e de lá até o começo de 2018 fui parte de uma igreja dessa denominação (o que não significa que eu concordava com tudo, mas chegaremos lá).

Eu cresci ouvindo que não se deve adorar nada e ninguém além de Deus, e que o templo, local sagrado, é ambiente de culto — isso sozinho já trazia uma quantidade enorme de formalidades como, por exemplo, não poder subir no altar de bermuda ou com um boné. Eu cresci ouvindo que rock era música do diabo, porque segundo alguns parentes “só Deus poderia permitir que alguém ficasse horas num palco tocando; se não é Deus, é outra coisa”. Eu cresci ouvindo na igreja que beber é pecado e que tatuagem me levaria ao inferno (não ouvi de todos, é claro, generalizei para o bem do texto).

Então a adolescência chegou e, com isso, um novo mundo a ser descoberto. Eu, que já gostava de arte e cinema, me apaixonei por completo aos 12 anos e encontrei um universo que me questionava e me fazia pensar, me fazia sentir, me fazia olhar para tudo o que eu conhecia de outra maneira. Foi com 12 anos que comecei a me interessar também por artes visuais e por músicas com mais “personalidade”, como o rock and roll. Foi a minha própria revolução cultural e nesse momento eu também passei a questionar o que eu ouvia na igreja.

“Pera aí, como que beber é pecado se Jesus bebia vinho?” — perguntou o jovem Nate. “Bem, naquela época, o vinho não tinha álcool.” — respondeu o homem mais velho. Contrariado, Nate questionou: “então por que Noé ficou bêbado?”

Na bíblia eu descobri que nem tudo que me falavam na igreja fazia sentido e, paralelamente às aulas de história e literatura na escola, percebi que tinha muito a se contextualizar ali no meio, afinal, a bíblia foi escrita há 2.000 anos atrás; como assim eu preciso contextualizar Machado de Assis, que morreu 20 anos antes do meu avô nascer, mas tenho que engolir uma literatura milenar sem pensar sobre como os costumes formaram parte de seu conteúdo?

Ou sem pensar como a tradução sofreu alterações?

Ou como o fato do livro ter ficado sob domínio da igreja católica por séculos na idade média pode ter mudado seu conteúdo?

Mesmo com tantas dúvidas sobre o que era costume o que é “regra”, eu preferi pensar da seguinte forma: a igreja é cristã, ou seja, segue os caminhos de Cristo; na dúvida, preciso me perguntar o que Jesus faria. Assim, eu continuei na igreja, mas carregando pontos de vistas diferentes: eu sou à favor do casamento gay, a igreja não; eu sou à favor da discriminalização do aborto, a igreja não; eu acho que sexo antes do casamento não é pecado, a igreja não, e por aí vai. A experiência comunitária ainda era mais importante e eu acreditava que existiam pessoas realmente boas lá dentro e, de alguma forma, me sentia bem em ajudar.

Em 2017, um novo pastor apareceu pela igreja (apenas para deixá-la no ano seguinte). Ele pediu algo pra mim numa das conversas que tivemos: vocês têm que incentivar as pessoas a interpretarem a bíblia sozinhas. Eu concordei, uma vez que tinha feito justamente isso, mas o que achei curioso foi um pastor falando sobre, pois a impressão que tinha era de que os líderes querem membros com cada vez menos personalidade, para que a interpretação apresentada seja a deles, sobre o púlpito, nos domingos à noite.

Chegou então 2018, o ano que jamais esqueceremos; começava a campanha de Jair Bolsonaro para a presidência; até maio eu estaria fora da igreja, por definitivo.

Havia discussão política dentro da igreja antes disso, mas não uma polarização nesse nível; antes era possível defender ideais cristãos dentro de uma perspectiva “conservadora”. Só que à partir de 2018, muitos cristãos começaram a defender um sociopata que publicamente afirmou querer que a ditadura tivesse matado 30 mil. Eu ouvi diversas justificativas para tal fala, inclusive uma pastora dizendo que não era isso que ele queria dizer; segundo ela, era “igual uma mãe que fala pro filho ‘eu vou te matar!’”.

Você tá de sacanagem, né?

Além de tudo o que citei, eu também cresci ouvindo o versículo 17 do capítulo 5 de Jeremias, que diz: “maldito homem que confia no homem, e faz da carne o seu braço, e aparta o seu coração do SENHOR!”. Mesmo assim, desde 2018, eu vejo gente fazendo gesto de revólver para celebrar um candidato criminoso e indo a lugares INACREDITÁVEIS para defender alguém que representa tudo ao que o cristianismo se opõe.

O templo não era santo?

Eu cresci na igreja ouvindo que a mentira era o pecado favorito do diabo (também conhecido como capiroto, capeta, demônio, lucífer, etc), e ainda hoje, a gente vê líderes — pastores(as), bispos, etc — se posicionando através de mentiras para defenderem uma posição política sem cabimento. Não se defende o racismo, o fascismo e qualquer forma de violência, e também não se abre diálogo com pessoas assim, pois adivinha, quando você assume que existe uma opinião legítima do outro lado, está automaticamente legitimando o conteúdo desta.

Não existe debate em que o assunto é a instalação de uma ditadura; apenas um lado está certo, o da democracia. Não existe debate em relação a chamar uma pessoa de pele preta de macaco, não existe justificativa, é crime e deve ser condenado imediatamente, sem hesitação (o que também vale para diversas situações).

Agora imagina: sabemos que muitas pessoas que vão às igrejas são pessoas humildes, que às vezes nem sabem ler; elas olham para o pastor como a referência delas, a pessoa que as quer bem. O que acontece quando um desses líderes começa a propagar mentiras?

Dentro da instituição, isso deveria ser algum crime de responsabilidade, contudo, me passa a impressão de que talvez seja um projeto. De qualquer forma, a responsabilidade ainda é da instituição — alguém precisa ser cristão dentro da igreja, pelo amor de Deus.

Em 2019, produzi e dirigi um curta-metragem que questiona isso (dentro da temática LGBTQIA+), chamado “Amai ao Próximo”. Algumas pessoas podem ter poder demais nas mãos e precisam ser responsabilizadas pelos mals que geram. Você consegue imaginar Jesus humilhando gente pobre? Ou talvez sendo homofóbico? Saindo na rua com arminha na mão ou até mesmo usando um carro como forma de abusar do “poder” que tem? Eu não, mas aparentemente uma pessoa formada em teologia consegue.

Em 2019, a pastora que mencionei antes (a do “eu vou te matar”) assumiu a igreja da qual eu fiz parte - é a instituição que anualmente define quais pastores continuam e quais pastores deixam uma congregação. Ela rapidamente conquistou os corações de muitos membros, inclusive de parte da minha família; foram diversos almoços em que eu tive que dividir o cômodo com ela, infelizmente.

Suas postagens no Facebook sempre chamaram a atenção de pessoas próximas a mim, que felizmente pensam de forma parecida (são mais ponderados, eu não tenho tanta paciência assim). Alguns dos posts chegaram até a minha pessoa em 2020, logo no começo da pandemia e…bem, eu salvei as postagens numa pasta, porque eu não conseguia acreditar que diversas “autoridades” da igreja não tivessem visto o que fora compartilhado.

colagem de prints do Facebook (todas com visibilidade pública); os nomes estão borrados.

Essas foram algumas das postagens compartilhadas/escritas por tal reverenda. Algumas delas não são apenas mentiras, têm conteúdo racista e violento.

Espero que vocês tenham em mente que essa não é a pastora de uma igreja como a Universal, mas sim de uma igreja de tradição cristã, nascida na Inglaterra no final do século XIX, a qual é responsável por uma universidade respeitada no Brasil em diversas áreas (incluindo, ironicamente, jornalismo).

Dito isso, eu tinha que me meter na situação. Ainda que não tivesse ido à igreja em 2 anos, sentia que precisava fazer algo porque senão ninguém faria. Falei com amigos de dentro da instituição metodista e eles me orientaram a falar com outra pastora, responsável pelo distrito. Eu falei, mandei um email maravilhoso com todas as informações e mais de 30 prints. A resposta foi a seguinte:

“A instrução do “Sr. X” foi perfeita, este é mesmo o caminho. Como SD vou procurar a pastora para uma conversa. Como cidadãos cada um tem direito à sua posição política, mas não podemos trazê-la para o seio da igreja. A nossa manifestação é sempre pela vida e pelo respeito.”

Na minha mente NÃO ERA POSSÍVEL QUE SÓ CONVERSARIAM COM ELA, alguma posição eles tinham que tomar, até para mostrar aos “seguidores” dessa pessoa que ela estava errada. Depois de algumas semanas, a resposta chegou e confirmou justamente o que eu temia: só conversaram com ela, a responsável e o bispo regional.

Vocês já sabem o resultado né? Lógico que não deu em nada. Questão de dias depois, ela compartilhou uma postagem racista; o conteúdo é mais do mesmo, do mesmo nível de ignorância de posts anteriores, só que dessa vez, uma outra pessoa - membro da igreja local - respondeu (veja a imagem abaixo).

A situação é muito absurda e não parou por aí, continua até hoje. Em sua página é possível ver inúmeras postagens que foram excluídas pelo próprio Facebook por serem fake news sobre a pandemia. O fato de que eu, não uma autoridade ou líder da instituição, foi quem tentou fazer algo sobre esse absurdo já fala sobre o estado e postura das igrejas no Brasil, principalmente no sul e sudeste.

E não são apenas os líderes, muitos membros concordam, o que cria a imagem de que as igrejas se tornaram um grande clube pseudo-elitista, em que os “crentes” se acham superiores à outras pessoas pois têm Deus ao lado deles, o que garantiria um passe livre.

Eu, porém, não desisti, fui falar diretamente com o bispo por email, mas ele recusou meu pedido por questões “burocráticas” (apesar de não me auxiliar sobre como eu deveria fazer a denúncia de forma correta) e depois fiquei sabendo, por outras fontes, que mesmo se o pedido fosse feito da forma certa, seguindo todas as requisições oficiais - o que incluiria recolher assinaturas e despachar o pedido presencialmente durante uma pandemia - seria recusado de qualquer maneira, pois ele já havia conversado com a pastora sobre.

Mas este não é um caso isolado, sabemos de diversos líderes religiosos de instituições diferentes, sejam batistas, presbiterianas, católicas e as neopentecostais que citei antes, que se posicionam da mesma forma, sobem no púlpito e pregam que “seus crentes” precisam defender esse governo neo-fascista e se manifestarem contra seus opositores.

Eles abraçam a mentira e, no meio da maior pandemia dos últimos 100 anos, se sentem confortáveis em meio à morte.

Existem aqueles também que não querem escolher um lado, claro, defendem o direito do exercício de expressão mas supostamente não concordam com nenhum dos lados. O curioso é que a bíblia prega que ficar em cima do muro não é o correto, está lá em Apocalipse 3:16: “Assim, porque és morno, e não és frio nem quente, vomitar-te-ei da minha boca”. Ou seja, as mãos desses “abstencionistas” estão cheias de sangue também.

Enfim, a hipocrisia.

Constantemente, eu me coloco a pensar: como seria se vivêssemos na Alemanha nazista, em 1935 por exemplo? Por mais que eu me esforce a acreditar no contrário, não consigo imaginar que seria diferente, afinal a Alemanha nazista era majoritariamente cristã e foram os protestantes, não os católicos, que ajudaram a eleger Hitler. Muitos, inclusive, foram influenciados por textos antissemitas de Martinho Lutero, figura seminal da reforma protestante, o que possibilitou o partido a utilizá-los de forma oportunística (mais sobre isso no livro de Christopher J. Probst, “Demonizing the Jews: Luther and the Protestant Church in Nazi Germany”) .

É o conservadorismo ignorante possibilitando a ascenção fascisita.

Existem inúmeras contradições entre se dizer antissemita e cristão, mas quem quer acreditar acha um jeito, cria justificativas e se convence de que a mentira é a verdade, e olha que naquela época não existiam tantas formas de descobrir o fato como se tem hoje em dia, agências que trabalham apenas com isso (como a agência Lupa).

Nós mesmos tentamos achar um motivo para que essas pessoas ajam assim: ignorância, anti-petismo, mal-humor, lavagem cerebral por culpa da televisão, etc… Mas no fundo, no fundo, elas gostam do poder, de escolher o certo e o errado sem que haja qualquer contestação, de dizer “você vai pro céu”, “você vai pro inferno”, “siga os meus passos” (mas não olha pro lado). Por isso Bolsonaro é o ídolo delas, para ele nenhum fato importa.

Ao escolher os costumes, o conservadorismo absoluto como resposta às (pequenas) medidas progressistas que vieram antes, o Brasil fez um pacto com o diabo e abriu as portas do inferno (da mesma forma que os EUA reagiram depois da eleição do Obama, o primeiro presidente negro do país). Agora já são 250 mil mortos e o estado vê na igreja desesperada uma nova oportunidade de se tornar mais popular, então abram as portas do templo, tá na hora de adorar.

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Nate Buzelli
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Written by Nate Buzelli

Tentando abrir uma janela para perspectivas não convencionais. Isso talvez seja um perigo. Graduado em cinema, escrevendo sobre cultura e cotidiano.

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