O Desaparecimento de Lorenzo Fabre
Para resolver esse mistério, recomenda-se um espelho
O orvalho cai na noite, algo tão comum, principalmente em regiões mais úmidas como a serra. É um tanto suave que não se percebe imediatamente, mas com o passar do tempo, tudo se molha: plantas, pessoas, animais, objetos, veículos… Tudo o que estiver desprotegido, à céu aberto.
São Paulo é uma das maiores cidades do mundo, em infra-estrutura, população, área total, aglomeração; pessoas se tornam números e por isso a maioria das experiências se tornam vazias. Entre esses números, está Lorenzo Fabre, um rapaz que diante dos olhos convencionais de uma metrópole é como todos os outros. Ainda, no casamento de seu tio em um glamoroso buffet, no alto da serra, Lorenzo era a única pessoa a se sentar na grama para que o orvalho caísse sobre si. Ele olhava para o céu escuro, no qual podia se ver algumas estrelas, e deixava a água massagear sua testa enquanto na festa, seus parentes, alguns embriagados e outros numa dimensão paralela com seus celulares, se esbaldavam.
Em seu terno preto com uma gravata vermelha, o rapaz respirava fundo, como se acumulando oxigênio antes de voltar para a cidade.
Lorenzo Fabre desapareceu pela primeira vez no dia 11 de outubro de 2014. Ele tinha 18 anos.
“Ele deveria ter voltado direto da escola”, contou sua mãe para um policial, seis horas depois do rapaz não ter retornado. Seus pais tentaram entrar em contato com ele através do celular e nada; seus amigos, todos em seus últimos anos de ensino médio, também não sabiam de nada. Ele deveria ter voltado pra casa. A polícia, contudo, só pode considerá-lo desaparecido depois de 24 horas.
E foi um dia de desespero para os pais. Sequestro? Acidente? Roubo? Ninguém sabia de nada e a família do rapaz já se encontrava para pensar uma estratégia de busca quando Lorenzo retornou para casa na tarde de 13 de outubro. Estava chovendo e poucas pessoas saíram de casa — ele ficou encharcado.
Seus pais foram a loucura. Choravam, abraçavam e questionavam o rapaz ao mesmo tempo, como se ele tivesse voltado após o naufrágio de um navio. “Eu fui andar e aí decidi dormir na casa de um amigo, pensei que tinha avisado vocês e depois acabou a bateria”, disse Lorenzo; sua tia, ao ouvir isso, reagiu chocada com a falta de responsabilidade do rapaz: “Lorenzo, é assim que você trata seus pais? Eles ficaram desesperados e você estava por aí?!”. Todos dentro da casa, e eram cerca de 12 pessoas, decidiram que era hora de gritar ao mesmo tempo, forçando Lorenzo a ignorá-los e subir para seu quarto. Num canto, Giovani, seu irmão de 14 anos, observava tudo indignado, mas quieto.
A reação por parte da mãe de Lorenzo foi particularmente radical. Ela se culpou por semanas e pensou ter criado um menino ingrato e indiferente. Entretanto, como ficava tirando foto o tempo todo, ela não prestou atenção durante o casamento de seu irmão; Lorenzo é diferente.
Ninguém sabe o que realmente passou pela cabeça dele, que voltou a agir normalmente após um castigo bizarro imposto a um rapaz maior de idade, e o que parecia ser um incidente isolado voltou a se repetir. cinco meses depois.
Lorenzo Fabre desapareceu pela segunda vez no dia 10 de março de 2015.
A reação foi outra dessa vez, principalmente ao perceberem que Lorenzo havia deixado o celular em casa. Os pais entraram em contato com os amigos que conheciam antes de comunicar a polícia — poucos, porém, já que Lorenzo era universitário e seuscolegas são novos e desconhecidos.
Aparentemente mais preocupante.
Após um dia, o questionamento sobre ir à polícia novamente despertou a fúria de Giovani, que sentia ciúmes do irmão irresponsável que recebia toda a atenção; na cabeça dele, Lorenzo se achava dono do mundo, mas Giovani não foi ao casamento de seu tio, ele tinha dormido na casa de um amigo da escola. Dois dias depois, a polícia foi alertada de novo, mas dessa vez o rapaz não retornou.
Cinco dias depois, quando as redes sociais de amigos e familiares já estavam lotadas com postagens sobre ele, e a casa recebia muitas visitas, o pai de Lorenzo decidiu ir até sua casa antiga, que passava por reforma, mas ao procurar a chave em seu gabinete, não a encontrou. Pensou que a tinha perdido, até que se tocou. Ele e a esposa foram para lá com um chaveiro, no meio da noite, enquanto um panelaço tomava forma nos prédios ao redor. O chaveiro abriu a fechadura e possibilitou que os pais encontrassem o filho acordado, deitado em seu antigo quarto e em pleno silêncio.
Enquanto caía no chão em alívio o pai tentava agredir o rapaz, desabafar seu sentimento de angústia e desprezo momentâneo. Agora era ele que pensava ter criado um sociopata, mas nem lembrou de Lorenzo durante o casamento de seu cunhado, pois era um dos homens altamente embriagados na festa.
Lorenzo tem 18 anos, não é uma criança, mas certamente foi obrigado a se consultar com uma psicóloga após a confusão geradacom a polícia — que pela segunda vez saíra para procurá-lo.
Nas primeiras consultas a psicóloga indagou Lorenzo sobre o que o levava a fugir, desaparecer. “Eu não fugi, nem desapareci, eu estava presente, nas ruas, andando pela cidade, respirando, apenas dormi num local diferente, não me escondi.” disse ele. Temendo uma piora no caso, a especialista conversava constantemente com os pais, ainda que não revelasse detalhes das consultas. Ela os incentivava a compreenderem os motivos de Lorenzo: o pai recusou, a mãe aceitou, o irmão se inquietou.
Semanas depois, sentados em frente a TV, assistindo o jornal da noite durante o jantar, Lorenzo piscava muito e, incomodado, reclamava de enxaqueca. Seu pai, ainda irritado, não o respondeu; sua mãe indicou onde ele poderia encontrar uma aspirina. Não foi o bastante. Ele se retirou e deitou em sua cama, mas ainda ouvindo a TV dos vizinhos através de sua janela. No dia seguinte, a caminho da faculdade, passando pelo centro da cidade, ele parou, se sentou numa praça e olhou para cima, admirando a magnitude dos prédios históricos à sua frente. “Parecem indestrutíveis” pensou, “até que haja um terremoto”.
Com o passar do tempo e das terapias, a psicóloga entendeu que o melhor seria deixá-lo “sumir” de tempos em tempos — seria uma forma de se recalibrar, digerir o mundo. Portanto, de tempos em tempos, Lorenzo sumia para voltar dias depois. No ano seguinte, depois de trocar o curso de sua faculdade, ainda morando com os pais, ele prometeu que avisaria quando precisasse “fugir”, e ele os avisou– uma vez.
Mas Lorenzo sempre voltava. Foi assim em 2016 e em agosto de 2017, última vez que desapareceu pontualmente. Os pais se sentiam confiantes, acreditavam que Lorenzo finalmente tinha voltado ao normal enquanto Giovani, agora com 17 anos, começava a faculdade de TI.
Porém, pouco mais de um ano depois, a velha sensação: Lorenzo não retornou.
Apesar de estranho, não foi um problema, já haviam lidado com isso antes e agora ele iria fazer 21 anos. “Tá tranquilo”, disse o pai, “seu aniversário é em duas semanas, ele vai voltar antes disso”. Giovani chegava tarde, agora trabalhando, e não se preocupava mais com o irmão; ele já tinha sofrido com isso e seu objetivo era juntar dinheiro e sair de casa o quanto antes.
As semanas, porém, passaram e nada dele voltar.
O aniversário chegou e nada dele voltar.
Os sentimentos que deram um tom à história no começo, regressavam. Duas semanas e nenhum Lorenzo.
Lorenzo Fabre desapareceu pela derradeira vez no dia 22 de setembro de 2018.
Semanas depois, a polícia foi chamada e foram obrigados a trabalhar, mas após os incidentes de 2014 e 2015, eles apenas fingiram qualquer interesse. A mídia, descobrindo que os pais não foram atrás das autoridades nos primeiros dias, passou a destrinchar a família Fabre em rede nacional: “como puderam friamente ignorar o sumiço de um rapaz que mora naquela casa?”, disseram vários âncoras e apresentadores, todos contrariados enquanto os pais se defendiam; “ele fazia isso, nós dávamos liberdade porque ele dizia que era pra descansar e recalibrar, mas sempre voltava”.
Os repórteres questionavam: “vocês nunca pensaram que ele poderia estar mentindo?”. A psicóloga foi levada a programas de TV e publicamente negou o conselho que deu aos pais, com o fim de preservar sua carreira. Giovani, o irmão que sentira ciúmes, agora chorava de raiva de si mesmo, de raiva dos pais e de raiva do seu irmão, que parecia ter encontrado um jeito de “vencer” a batalha de egos.
O circo midiático fez com que a polícia iniciasse uma investigação sobre os pais de Lorenzo, a qual obviamente não levou a lugar algum, mas deixou a família Fabre exausta, envergonhada e ainda mais quebrada do que já estavam. Dizem que Giovani nunca mais usou o sobrenome Fabre, adotando um nome artístico, enquanto os pais se separaram e deixaram a cidade grande.
São Paulo, afinal, é para aqueles que sabem lidar com o excesso.
Com essa história chegando ao público, os fãs de teoria da conspiração acham que Lorenzo foi morto por algum familiar e que tudo isso fazia parte de um plano; outros dizem que ele apenas se apaixonou e foi viver com alguém que amava. Este singelo narrador, a quem vos fala, não acredita nessas teorias mas imagina que Lorenzo encontrou a verdade longe de tudo isso — ou talvez tenha sido silenciado em seu próprio isolamento.
Quando se está à vista, ninguém se importa com a distância; é na hora que foge o alcance de nossos olhos que a individualidade reverbera.