Fugindo (ou tentando)
…durante a pandemia.
Se cuidar é fundamental para uma vida de qualidade. Quando ouvimos essa afirmação, normalmente pensamos em cuidados básicos de higiene ou de exercícios para se manter em forma, deixando o sedentarismo para trás. Porém, se cuidar também é perseguir sonhos, fugir de zonas de conforto, exigir mais da própria pessoa; basicamente, se fazer crescer. E por mais que eu concorde com os outros cuidados com o corpo, a parte mais importante deste é também a mais abstrata: a mente.
Sim, a discussão sobre saúde mental cresceu muito nos últimos anos, deixando um pouco de ser tabú, afinal todos sofremos com ansiedade, independente do grau. Meu objetivo com esse texto não é fazer uma análise sobre tal tema, deixo isso para os especialistas, mas refletir sobre como tem sido extremamente desafiador se manter são em meio à maior pandemia dos últimos 100 anos.
Eu sempre lidei com a ansiedade de forma…controversa, principalmente considerando que sou super exigente comigo mesmo. Sempre buscava tirar o máximo dela e torcia para que ela não tirasse o máximo de mim também. A ansiedade me dá um senso de urgência que quando na medida certa, me faz muito produtivo. Em fevereiro deste ano, por exemplo, precisava escrever um roteiro de 120 páginas até o começo de março, e a história só ficou clara em meados de fevereiro, quando terminei o argumento. Só que não eram 120 páginas; com o passar do tempo percebi que seriam mais de 150.
O desafio me motivou, e a ansiedade me ajudou a focar de uma forma estranha, fazendo-me pensar sobre o que estava escrevedo em todos os momentos - ainda que eu não quisesse. Assim eu atingi meu objetivo no último dia (sequer deu tempo de revisar) e fiquei bastante feliz, pois fora a primeira vez que escrevi algo dessa magnitude sozinho.
Um amigo meu odeia ouvir essas histórias, ele me acha louco por ver algo bom dentro de um problema que assola milhões de pessoas ao redor do mundo; mas eu acho que toda “energia” pode ser transformada em motivação, se utilizada da maneira correta.
O grande problema da ansiedade, porém, é que ela não gosta de ser controlada.
Naquela mesma época, eu me senti inseguro por alguns motivos. A minha busca incessante por perfeccionismo, por entregar o melhor que eu poderia possivelmente entregar, me levou a questionar a minha qualidade, e isso foi o bastante para me arrastar numa espiral por alguns dias. Quando isso acontece, pelo menos da minha parte, eu não vivo no presente: eu vou ao passado procurar soluções para garantir um futuro “ideal”, e é assim. Normalmente fico mais comunicativo também, pois coloco meus amigos na discussão.
Para lidar com essa angustiante sensação, eu saía para andar. Cheguei a andar 15km nessa brincadeira, com a ideia de basicamente transformar a energia negativa que vem da minha mente em energia física, me desgastando e assim relaxando.
Admito que no papel, esse anseio é ótimo quando se está criando, porque a experiência de imaginar 1001 futuros diferentes, possibilidades distintas para uma pergunta simples cuja resposta eu não tenho, ajuda a imaginar um mundo que ainda não existe, ajuda a imaginar o comportamento de pessoas que não conheço.
Difícil, mas convivível.
Tudo fica realmente tenebroso quando se é tirado de você as suas formas de canalizar esses problemas. E na pandemia, fomos trancados por meses com um espelho na nossa cara e uma arma letal em nossas mãos.
Parece tolo falar de “se trancar” quando hoje em dia moradia é privilégio, principalmente no tempo da COVID-19. Contudo, mais de 800 mil pessoas se matam por ano no mundo, mesmo com todo o incentivo que se tem à prevenção (levando a criação do Setembro Amarelo), ou seja, isso também é um problema que precisa ser discutido, assim como a violência doméstica, que cresceu bastante durante a quarentena. O mal do vírus se torna muito maior quando consideramos que as outras disfunções não pararam para esperá-lo passar.
Todos nós que respeitamos a quarentena lidamos com a ansiedade na pandemia; além do medo do vírus, de comprometer nosso futuro ou o futuro de outros, tivemos que lidar com nossos próprios “demônios” dentro de uma jaula, acessando o mundo exterior através da arma letal que citei antes: a internet.
Ontem fiquei praticamente o dia todo no Instagram, auxiliando um amigo que estava sem celular. Nossas constantes discussões me fizeram passar mais tempo do que eu deveria olhando fotos e vídeos de outras pessoas, e cada uma delas me levava a pensamentos diferentes, que no ciclo incessante de questionamento, voltavam até minha pessoa novamente. E aí aparece a insegurança, o senso de que as coisas estão diferentes, por vezes de não pertencer, a vontade de querer tacar o celular na parede e fugir…
A realidade não nos permite fugir, porém. Então o que há de acontecer?
Não sei.
Essa é quase sempre a resposta, super simples. Niguém sabe, mas nossa cabeça insiste em procurá-la, e agora não dá para simplesmente sair andando e se desgastar ao ponto de relaxar. Isso seria anti-ético e perigoso, levando em consideração que o foco diminui quando se tem tanta coisa na cabeça, comprometendo os meios de precaução.
Então o que fazer?
A parte competitiva de mim queria usar o desafio da pandemia como motivação (parecido com o que fiz com o roteiro) para me manter são. Só que a pandemia já dura mais de 6 meses.
Então aprimorei outras duas maneiras de lidar com esse problema, sem poder sair de casa e sem poder ver os amigos; elas não vão impedir a crise, de forma alguma, mas vão diminuir as consequências (pelo menos fizeram isso comigo). A primeira é, simplesmente, criar; depois de respirar fundo por alguns momentos, eu consigo sentar e produzir (no meu caso, escrever ou compor, às vezes gravar algum conteúdo que se relacione com o momento vivido). Não que seja tão fácil, pois a minha exigência para comigo continua alta.
A segunda é mais simples: desabafar. Eu sei que muitas vezes não queremos incomodar as pessoas que são importantes para nós com pensamentos e perguntas que elas jamais poderão responder. Mas eu garanto, o fato de se ter alguém para reagir, para permitir que você OUÇA e não se sinta como se a parede fosse a melhor opção, já fará as coisas melhor.
Quando a ansiedade bate forte, o senso de impotência é gigante, assim como o sentimento de que não somos o suficiente. O amigo e a amiga verdadeiros normalmente nos conhecem bem o suficiente para conseguir mediar a infusão de realidade sobre a pessoa (o clássico “você está causando isso sobre você”) e também compreensão.
Ontem, ao conversar com um amigo sobre as frustrações de um ano para o qual tinha grandíssimos planos, ele sugeriu que eu colocasse uma música e relaxasse. Eu falei que ao fechar os olhos, via “o caos em forma de imagem”, algo como o quadro abaixo de Wassily Kandisnky:
É bem isso, só que adicione as vozes também.
(risos)
Comecei a pensar sobre o grande pintor, se ele não sentia isso em diversos momentos e era justamente a mesma sensação que tentava criar em suas obras (é sabido que Kandinsky buscava um significado puramente espiritual em suas obras). Nunca saberei a resposta com certeza, mas sei que ele também era alguém que não se conformava com a mediocridade, ele queria literalmente pintar seu nome na história, e hoje é considerado o pai do expressionismo abstrato.
Mas advinha: foi um processo (como todos os pintores, ele começou dominando o realismo), e isso que é tão difícil de aceitar num mundo de redes sociais, mas não apenas do lado do “aspirante”. Assim, a sociedade brasileira é uma contradição ambulate em praticamente todas as áreas. Enquanto eu preciso compreender que a vida é uma escada e que para chegar no topo é necessário ir degrau por degrau, o mercado de trabalho precisa entender que não se acha gente jovem com muita experiência e principalmente que pessoas que são muito criativas, que pensam “fora da caixinha”, não se encaixam nos padrões de “profissionalismo” que a sociedade impõe.
Talvez seja isso o grande causador da ansiedade? Sendo super criativo, estou acostumado a criar mundos, mas o mundo real que eu gostaria que existisse não posso criar, tampouco modelar, e aí as questões voltam a nos rodear.
Nos acostumamos com frases de efeito como “tudo acontece no seu devido tempo” ou “dê tempo ao tempo”, mas a realidade é diferente: a vida é curta, justamente porque não se pode considerar o passado, ou a duração total do tempo de vida. A vida é o presente, e este dura o que é vivido - o futuro não existe até que seja o presente.
O filme “A Árvore da Vida” (The Tree of Life — Terrence Malick, 2011) tem uma das minhas frases favoritas de todos os tempos: “Sem amor, a vida passará num piscar de olhos”.
É isso, e vale para tudo.
É o amor por algo que nos motiva (profissão, hobbie, etc), é o amor próprio que nos dá confiaça; já o amor que nos envolve, é o que muitas vezes nos dá paz. Quando não estamos vivendo isso, queremos chegar nesse ponto, e assim a ansiedade toma controle, nos faz viver o inexistente. Talvez o mundo (como sistema, sociedade) não tenha mais amor e por isso o sentimento crescente é de que a vida vai acabar em breve (veja “First Reformed” — 2018), vai passar “num piscar de olhos” antes que possamos viver o que gostaríamos. Daí o desespero.
2020 tem sido um ano difícil para todos e, de forma simbólica, acredito que ele só acabará com a chegada da vacina. Aí sim será possível comemorar e se sentir orgulhoso de que saímos vivos dessa pandemia, que sobrevivemos à chave na porta e ao vírus no ar, mas principalmente à crueldade de acordar todo dia com a ciência de que nada mudou e que só a paciência proverá uma saída. E aí poderemos voltar a perseguir os fantasmas que nos motivam.