Ciao, Maestro!
Um olhar sobre como um dos dois maiores compositores do cinema definiu o seu legado.
O cinema nasceu oficialmente em 1895, 33 anos depois nasceu Ennio Morricone, que nos deixou hoje, aos 91 anos. Quando falarmos do compositor italiano, vamos mencionar Sergio Leone, Bernardo Bertolucci, Michelangelo Antonioni, Vittorio de Sica, Pier Paolo Pasolini, Luchino Visconti (todos italianos), John Huston, Terrence Malick, John Carpenter, Pedro Almodóvar, Mike Nichols, Quentin Tarantino, Brian de Palma, entre outros grandes cineastas, históricos, cujos filmes foram marcados pela música dele.
Ao meu ver, existem dois grandes compositores que estão acima de todos os outros na história do cinema, e eles são contemporâneos: Morricone e John Williams. Ambos despontaram para o cinema em meio à ascenção do cinema moderno em seus países, nos anos 60; ambos são famosos por melodias que não saem da cabeça do espectador, mas são compositores bastante diferentes, até pelo método em que colaboravam com os diretores; enquanto Williams sempre compôs a trilha dos filmes após o primeiro corte, Morricone muitas vezes precisava escrever e produzir a música de um filme para que depois ele fosse gravá-lo, pois cineastas como Sergio Leone utilizavam a música como sinal para a movimentação de atores e equipe durante a gravação. Pode-se dizer que a música do grande maestro então inspirava seus colaboradores, assim como determinava a direção de um filme antes mesmo dele acontecer.
“From Ennio I ask for themes that clothe my characters easily. He’s never read a script of mine to compose the music, because many times he’s composed the music before the script is ever written. What I do is give him suggestions and describe to him my characters, and then, quite often, he’ll possibly write five themes for one character. And five themes for another. And then I’ll take one piece of one of them and put it with a piece of another one for that character or take another theme from another character and move it into this character…. And when I have my characters finally dressed, then he composes. And records with a small orchestra — 12 pieces — and then we listen to it. And then we go on to the script.” — Sergio Leone, para Marlaine Glicksman em 1987.
Ambos compositores começaram de forma explosiva, trabalhando em vários projetos todos os anos. 1966 é um ano excelente para se observar a qualidade dos jovens compositores e ainda assim apontar algumas diferenças na abordagem entre os dois: enquanto Williams (na época era Johnny) colaborava com William Wyller e Audrey Hepburn em “Como Roubar um Milhão” - entre outros filmes - Morricone compôs e conduziu as trilhas de “A Batalha de Argel” (Gillo Pontecorvo), “Uccellacci e uccellini” (Pier Paolo Pasolini) e “Três Homens em Conflitos” (Sergio Leone), entre outros filmes.
Desses trabalhos de Morricone, as músicas do primeiro e do último filme citados são duas das mais icônicas do cinema, ajudadas pelo contexto em que foram ouvidas pela primeira vez. Elas giram em torno de um tema simples, com uma melodia muito pontual que retorna diversas vezes à narrativa, seja da mesma forma ou repaginada, uma variação da original.
Além dessa peça mais famosa, todo o soundtrack de “Três Homens em Conflito” é extremamente reconhecível (veja Ecstasy of Gold), pois já foi reutilizado de diversas formas em diversos filmes. Eu lembro que ao ouvir o tema desse filme, com o suposto som da águia, me questionava de onde vinha, pois já tinha ouvido em tantos filmes diferentes até meus 12 anos. Essa é a primeira diferença fundamental entre Morricone e Williams: por menos abstrato que seja, a música do italiano pode ser enquadrada em diversas situações, pois ela existe muito além do filme. Não está lá para providenciar humor ou servir de “forma tática” muitas vezes, porque o processo de criação se iniciava antes. O filme precisava se adaptar à música dele e suas ideia, assim Morricone buscava trabalhar apenas para diretores com autonomia.
Seu mais famoso colaborador, Sergio Leone, confiava nele - eram amigos de escola, afinal. Dois anos depois, Leone preparou o que imaginava ser sua obra-prima até então (uma ótima discussão, para outro dia): “Era Uma Vez no Oeste”, estrelado por Claudia Cardinale, Henry Fonda e Charles Bronson. Entre planos de tirar o fôlego, cenas de ação, romance, personagens icônicos…qual foi o destaque? A música.
Essa obra tem um lugar especial no meu coração. Como pode um faroeste ser conduzido por uma música tão sublime? O tema traz novas camadas para a narrativa de Leone, que se torna mais emocional que “My Darling Clementine” (1946) e “Rastros de Ódio” (1956)- ambos de John Ford - e ao mesmo tempo mais brutal que seus filmes anteriores. É possível que a música transforme e não apenas complemente.
Na década de 70, o trabalho continuou e Williams construía seu caminho para se tornar o grande colaborador do cinema americano, trabalhando para diversos diretores em ascenção, como Norman Jewison, Robert Altman, Mark Rydell e Clint Eastwood, mas foi em 1975, com “Tubarão” de Steven Spielberg, que ele tomou um caminho que o consagraria e o distanciaria mais de Morricone. Eu gosto de fazer uma comparação em termos de música clássica: pegue dois compositores românticos contemporâneos, Tchaikovsky e Dvořák, ambos famosos por suas melodias (veja “A Valsa das Flores” do primeiro e a Sinfonia no. 9 do segundo) os quais provavelmente se influenciaram ao longo de suas carreiras; o russo é muito mais famoso, pois seus balés gigantes tomaram o mundo todo, mas o tcheco nunca deveu em nada a ninguém, mantendo uma qualidade altíssima e compondo sua obra-prima dez anos antes de sua morte.
Em meios as colaborações com Spielberg e George Lucas, John Williams se tornou uma superestrela - não pela personalidade, tímido de doer, mas porque não dava para separar os sucessos milionários, dos quais participou, de suas músicas. E com o passar do tempo, Williams se tornou uma espécie de Wagner do cinema, o oposto de Ennio Morricone, que saíra da Itália para conquistar os Estados Unidos definitivamente em 1978, trabalhando com Terrence Malick em “Days of Heaven”, que lhe rendeu sua primeira indicação ao Oscar - um absurdo, pois todas as trilhas citadas aqui, que vieram antes, são consideradas obras-primas.
Com o passar do tempo, Morricone foi simplificando seu trabalho, apostando nas cordas e madeiras (flauta, oboé, clarinete e fagote), deixando os metais como coadjuvantes completos (sendo a exceção, o tema de “Os Intocáveis”). Com a chegada da década de 1980, Morricone atingiu a eternidade: “Enigma de Outro Mundo” (John Carpenter, 1982), “Era Uma Vez na América” (Sergio Leone, 1984), “A Missão” (Rolland Joffé, 1986), “Os Intocáveis” (Brian de Palma, 1987), “Busca Frenética” (Roman Polanski, 1988) e “Cinema Paradiso” (Giuseppe Tornatore, 1988).
Não existem palavras que definam as trilhas desses filmes, mas podemos entender o que é a maturidade para o grande compositor: são melodias imortais, temas que definem um filme em suas simplicidades. Não era mais necessário de contexto, a música falava tudo o que você precisava saber sobre os personagens e a trama.
A Missão tem dois temas muito reconhecíveis, o mais famoso sendo “Gabriel’s Oboe” - a primeira melodia tocada no vídeo acima. A segunda, “The Mission”, é composta de uma sequência muito simples de notas que acompanhadas pela harmonia correta contam uma história de redenção e descobrimento. Eu já assisti “A Missão” duas vezes e sempre fico indignado com os problemas do filme, mas não consigo de deixar de apreciá-lo por causa de sua música. Rolland Joffé recebeu a Palma de Ouro pelo filme no Festival de Cannes de 1987, mas deveriam ter entregue para Morricone.
Nostalgia é o que nos move a lagrimas quando ouvimos a trilha-sonora de Star Wars, fazendo-nos lembrar da infância, do momento em que vimos o clássico blockbuster pela primeira vez, passa um filme pela cabeça. Mas a nostalgia virou música em 1988, antes da geração do século XXI que promoveu a glamourização da cultura pop, a qual que é movida por esse sentimento.
Um arpeggio de Si bemol seguido por uma rápida “trocação” entre Dó, Ré e Fá é o suficiente para fazer as memórias do ouvinte entrarem em ação. Antes mesmo de assistir o filme, eu já era apaixonado pela música, me fazia sentir saudades de algo que ainda não aconteceu, a única peça que me traz sensação parecida é o primeiro movimento de “Appalachian Spring” de Aaron Copland, escrito 40 anos antes.
Sem arranjos super complexos como os de John Williams, Bernard Hermann e tantos outros, a trilha-sonora de “Cinema Paradiso” é emoção transformada em música.
Desde então, Ennio Morricone cresceu em Hollywood, se tornou lenda e inspirou jovens cineastas, como Quentin Tarantino, que desde 1992 utiliza músicas do grande compositor em seus filmes, de forma totalmente diferente da qual ela foi concebida originalmente, algo que irritava o próprio Morricone, mas a verdade é que a verdadeira arte, uma vez que exibida, passa a pertencer ao público e não mais ao autor (ainda que exista política de direitos autorais).
Por bem ou por mal, Tarantino apresentou Morricone para uma geração mais nova e, com “Bastardos Inglórios” (2009), montou a melhor coletânea de peças menos conhecidas do compositor, mostrando que sua música e cinema andam lado a lado.
Abaixo a cena do filme “Revolver” (Sergio Sollima, 1973), para o qual Ennio Morricone fez a trilha e compôs a música “Un Amico”. Depois, a mesma música utilizada por Tarantino em “Bastardos Inglórios”:
O espírito está lá, a referência também, mas o contexto, na mente de Morricone, não faz sentido algum provavelmente (risos).
Em 2015, Tarantino finalmente convenceu o compositor - eu imagino - a escrever música original para seu novo filme, “Os Oito Odiados”. A trilha, apesar de estar longe de seu melhor trabalho, lhe rendeu um Oscar finalmente, e ao seu lado, estava John Williams, o único que foi abraçado pelo compositor italiano. Para minha pessoa, fã dos dois, esse momento valeu mais do que qualquer outra coisa na cerimônia esquecível.
Em uma entrevista para o The Independent, em 2016, Morricone disse (em tradução livre) que “alguns filmes funcionam muito bem com as músicas de Bach e Mahler, que existiam muito antes de tais filmes, pois a música tem sua própria autonomia”. O mesmo valia, e ainda vale, para ele mesmo.
O gênio da melodia simplista e perfeita, refrescante e familiar, se vai, mas a arte fica…e os sentimentos também.
Em junho de 2020, Ennio Morricone e John Williams foram honrados com o prêmio Princesa de Astúrias, na Espanha, pelo seus trabalhos com a música para o cinema.