Alguns meses depois…uma perspectiva sobre o fracasso final de Star Wars.
Fã (encurtamento de fanático, do latim fanaticus, ‘’louco, entusiasta, inspirado por algum deus’’)
A cultura pop da forma que conhecemos hoje teve início em 1977, quando a 20th Century Fox lançou nos cinemas o filme que daria início a maior saga da história do cinema, STAR WARS (“Guerra Nas Estrelas” no Brasil). Uma geração de fãs nasceu daí, pessoas que queriam sonhar com o impossível, pessoas que queriam sonhar com a liberdade e serem inspiradas pela luta de um fazendeiro, um contrabandista e uma rebelião (o primeiro filme foi lançado numa época em que muitos países sofriam com regimes ditatoriais, inclusive o Brasil); foi um filme para TODOS e por isso, mesmo depois de 42 anos, ainda tem força.
É interessante mencionar que quando o primeiro filme da saga foi lançado, George Lucas tinha status de autor, ele vinha de um sucesso de crítica e público, Loucuras de Verão (1974 )— o qual lhe rendera indicações ao Oscar de roteiro original e direção, mas este projeto ficava longe de um grande e caro filme de estúdio (principalmente se levarmos em consideração que na década de ’70, os diretores ganhavam mais liberdade para colocarem suas visões em prática).
Em 1980, o segundo-filme da saga foi lançado: O Império Contra-Ataca, este que viria a ser considerado um dos melhores filmes americanos de todos os tempos. O roteiro, escrito por Lawrence Kasdan, era não convencional: abria mão de um incidente-incitante clássico e de pontos de viradas convencionais (os quais determinavam a necessidade dramática de cada personagem). Fazendo isso, o filme ganhava imprevisibilidade — se você não sabe qual é o objetivo definitivo dos protagonistas (divididos em dois núcleos — Luke em Dagobah, Han/Leia/Chewie e C3PO em fuga pelo espaço), não há como saber qual será o próximo passo dentro da trama. Essa experiência, muito diferente do que se via até então no cinema de estúdio (o último blockbuster de Kasdan, Caçadores da Arca Perdida (1981), dirigido por Steven Spielberg, seguia uma estrutura de roteiro extremamente tradicional, até porque fora inspirada nas aventuras do 007 e nos filmes de David Lean), criava um ascendente de emoções, desde o romance de Han e Leia à prisão e quase morte de Han Solo, à traição e reviravolta de Lando, à apresentação de Yoda e, finalmente, à grande revelação final (“No, I’m Your Father”).
A sequência de acontecimentos finais é o suficiente para deixar qualquer um maluco , até por isso, na época, muitos fãs não gostaram do que aconteceu e a Variety chamou o twist de novelesco (não era).
Mas anos e anos depois, após outros filmes — bons e ruins — alguns fãs preferem escolher do que querem lembrar e do que não querem. Por exemplo, já que Luke é filho de Vader, Star Wars é uma série sobre nepotismo na força, certo? Não, Anakin era um escravo, Han era um contrabandista, diversos Jedi foram identificado ainda jovens, quando não tinham nada e nem eram alguém; o próprio Luke se tornou um mestre Jedi saindo de uma família pobre de fazendeiros; o fato de Vader ser seu pai tinha nada a ver com sua criação e sua mentalidade para atingir um objetivo. Ele chegou aonde chegou por mérito próprio. Ao mesmo tempo, Luke não teve treinamento o suficiente, não teve mentores o suficiente e sempre foi um tanto inseguro, e se o nepotismo não influenciou sua trajetória “profissional”, a sua família sempre sofreu com o lado negro da força.
O que Rian Johnson construiu em Os Últimos Jedi (2017), na minha opinião o melhor filme da saga depois de “O Império…”, faz muito sentido dentro do lore de Star Wars. Rey é uma sucateira, ela foi abandonada, ela teve que se virar sozinha em meio à tantos homens e seres que tomam proveito um dos outros. Ela foi obrigada a aprender rápido, ela foi obrigada a acumular conhecimento com o intuito de sobreviver.
Isso não acontece só na ficção. As mulheres, historicamente colocadas em segundo plano e abusadas pela sociedade, foram obrigadas a fazerem coisas que não deveriam/gostariam/teriam que fazer caso tivessem uma escolha, mas elas precisavam sobreviver, precisavam se adequar às normas da sociedade para que tivessem como trabalhar, se divertir, basicamente viver. Não são apenas as mulheres mas qualquer minoria.
Rey é poderosa porque é esperta, porque ela aprende rápido, como um “milenium” (pessoas que nasceram/cresceram durante a década de 2000); com 9 anos uma criança já sabe editar um vídeo hoje em dia, algo que gerações passadas demoravam décadas para aprender. Faz sentido que Rey seja a nova heroína e faz sentido que ela não seja filha de ninguém, até de um ponto de vista narrativo, pois é mais desafiador e mais recompensador no final (dentro de um arco bem construído).
A expectativa dos fãs para a genealogia de Rey não é indevida, já que J.J. Abrams estupidamente plantou isso sem necessidade alguma no primeiro filme da trilogia nova (O Despertar da Força, 2015), como fazia em Lost (e imaginar que culpamos Damon Lindelof por tantos anos e ele depois nos entregou a melhor série da última década, The Leftovers), e coube a Rian Johnson lidar com isso.
Johnson lidou da melhor forma possível, utilizou a informação já existente para acrescentar ao principal tema do filme (equilíbrio e conexão) e também aos arcos de Rey e Kylo Ren. O resultado foi fechamento e preparação para a conclusão, o embate final entre um vilão agora estabelecido (leia o ótimo artigo de Sean Fennessey do The Ringer) e uma heroína confiante no seu passado e que negou à tentação do mal, após ouvir sobre o erro de seu mestre.
Quando Kylo Ren destruiu seu capacete, o último resquício da separação entre Ben Solo e Kylo, seu lado Skywalker morreu para que ele atingisse seu potencial como Sith — por isso não faria sentido caso ele concertasse o capacete e voltasse a utilizá-lo.
Mas agora que mencionei o mestre, agora que mencionei Luke, vamos falar sobre o que mais irritou os fanáticos abreviados do Twitter e da internet: a tentação. Como já mencionei, Luke sempre foi inseguro e no sangue de sua família sempre existiu perturbação na força, mas isso nunca o impediu de agir — às vezes sem pensar. Após 20 anos do Retorno de Jedi (1984), muito aconteceu, mas o fundamental é que Luke, com muitos livros de suporte e sem mentores, tentou abrir uma academia Jedi e seu principal aluno seria seu sobrinho; era mais do que esperado que ele tivesse problemas, afinal, um cavaleiro Jedi começa seu treinamento ainda quando criança (os Younglings) e Luke nem sequer TERMINOU seu treinamento. Como poderia ele não ser inseguro ao lidar com um familiar que ama sabendo que teria que enfrentar o lado negro da força que perturbou sua família? Para piorar, ele sente o mal que sentiu em seu pai (dilema parecido com o de Looper, 2012, outro filme de Johnson) e por um momento pensa que pode evitá-lo, mas retornando à racionalidade, deixando os instintos de lado, ele volta atrás. Ou seja, ele não cedeu ao lado negro e não cedeu à tentação. Ele voltou atrás antes de fazer qualquer coisa, mas o medo subiu a cabeça do sobrinho e o medo foi sem dúvida causado pelo mestre, por isso ele se culpa, por isso ele se fechou para a força como um religioso se fecha para Deus depois de frustrações fortes, de receber o silêncio de volta.
Isso é uma boa história, fundamentada em humanidade e apresentada através de sentimentos que são familiares a nós, pois todos nós já falhamos dessa forma com alguém ou conosco. A trajetória de Luke, que assim como Rey e Kylo tem um arco bem desenvolvido, é o ponto alto de “Os Últimos Jedi”, não por criar algo do nada, pelo contrário, só alguém que conhece muito bem e ama esse personagem, essa franquia, pode tratar de assuntos delicados de forma tão sensível e respeitosa ao herói e à sua genealogia (tanto que no final do filme, Luke é tratado como o maior herói da galáxia, uma lenda). A forma como os radicais reagiram ao arco de Luke é estúpida.
Mas vamos continuar a falar de “Os Últimos Jedi”, porque os arcos de Finn e Poe (com isso já temos 4 arcos diferentes num filme de estúdio, o que é muito raro, já que estúdios querem tramas fáceis para todos) também terminam no ponto correto para a grande conclusão — ainda que tenham um senso de fechamento (o filme de Jonhson não precisa de um filme seguinte para funcionar sozinho, felizmente): Finn começa a trama achando que não há o que possa oferecer, e ele tem razão; na vida toda foi Stormtrooper e sua estadia na resistência tem mais a ver com sua paixão por Rey, a única garota que conheceu. Ao longo do filme, através de Rose (Kelly-Marie Tran), Finn vai perceber que existe algo pelo que se vale a pena lutar, mesmo que se tenha pouco a oferecer, e que existe mais de uma garota no mundo (ótima forma de você acabar com a ideia de qualquer romance entre os amigos Rey e Finn), mas a forma que Johnson conduz a jornada de Finn e Rose está dentro, novamente, do tema primário do filme: equilíbrio e conexão.
Por sinal, o que é equilíbrio e conexão em Star Wars? A força. A força que une, a força que envolve o lado claro e o lado escuro, a força que promove harmonia na natureza, e o homem como animal que é também faz parte da natureza. Por isso é importante mostrar Luke vivendo com as cuidadoras do templo em harmonia, vivendo com os Porgs e tendo alimento provido pelos animais da Ilha (sejam eles terrestres ou marinhos) — é uma troca que a força proporciona.
Finn e Rose fogem de um planeta elitista e nojento, cheio de escravos e animais apreendidos. É a conexão entre uma criança que precisa de esperança para continuar a viver, os fugitivos em busca de uma vitória na grande guerra e os animais que querem liberdade que faz da fuga possível; e no meio de tudo isso, a destruição do cassino é emblemática: só quando os oprimidos se levantarem e tomarem seus devidos lugares, poderá haver mudança de verdade.
“Ah, mas não leva a lugar algum.”
Mentira, leva à conclusão dos arcos de Finn e Rose, e também acrescenta à experiência do filme, que não tem uma narrativa convencional. É muito fácil criticar sem ter visto nada, mas quando se expandir a visão sobre o que faz cinema ser cinema, além de Disney e blockbusters americanos, se aprende que não existe fórmula para fazer filme, por sinal, da mesma forma que Lawrence Kasdan demonstrou com o “O Império Contra-Ataca”, em 1980 (como mencionei anteriormente).
Com Poe é a mesma coisa; ele é o jovem nervoso, rebelde, que se vê preso a um sentimento fechado e correto (segundo ele): Almirante Holdo (Laura Dern) está destruindo a missão e ele precisa interferir. É um sentimento extremo, que se prova errado, porque extremismo não leva ao…equilíbrio. Sabedoria é equilíbrio, é ser cinza quando o mundo é preto e branco. Poe aprende a respeitar a sabedoria e conclui seu arco como um líder, preparado para a grande batalha final.
“Os Últimos Jedi” é bem escrito, bem dirigido e tem problemas pequenos que podem ser discutidos, mas além de tudo isso é um filme que sabe o que quer e o que precisa fazer para chegar lá. É um filme que leva o expectador por caminho inesperados os quais trazem experiências imprevisíveis. É um filme de estúdio com camadas e que, a exemplo da conexão da força, tem em sua arte, fotografia e montagem uma colaboração harmoniosa. Somente a burrice, a estupidez de fanáticos abreviados e de homens machistas e racistas, bravinhos porque os protagonistas agora são uma mulher, um negro e um latino, conseguiria distorcer a narrativa do filme. Mas Star Wars hoje pertence a Disney, e a Disney precisa fazer 2 bilhões por filme e para isso é necessário agradar a todos, então eles viram “Os Últimos Jedi” como um risco.
É necessário falar mais do oitavo filme do que do nono, afinal, num funeral deve-se celebrar a vida e não lamentar a morte. A Ascensão Skywalker tem inúmeros problemas, problemas do começo ao fim e todos, direta ou indiretamente, poderiam ser evitados se houvesse uma continuidade à partir do final de “Os Últimos Jedi”. Como falei antes, Johnson deixou os personagens preparados para a grande batalha, mas J.J. Abrams e companhia, como um político burro que não quer dar continuidade às boas decisões do regime anterior, quis desfazer praticamente tudo o que foi construído por Johnson e, consequentemente, ele perdeu tempo -> e perdendo tempo ele não desenvolveu os arcos dos personagens -> e não desenvolvendo bem os personagens a narrativa não funcionou, pois numa estruturação clássica, a narrativa serve os personagens.
A inclusão de Palpatine na trama e no arco de Rey e Kylo é uma das coisas mais inexplicáveis que eu já vi no cinema, nível Transformers 2 (2009). Me custa dizer isso, mas a verdade é que esse filme só não foi mais mal avaliado por causa da nostalgia). Não havia necessidade para Palpatine ser trazido de volta, pois Kylo Ren já havia completado sua transformação e com isso já seria o grande vilão do terceiro filme, a ser enfrentado. Bem diferente do que acontecera com Vader, que já tinha sido apresentado sob a influência do Imperador (que só apareceu presencialmente no terceiro filme) e não se rebelaria até o clímax final da trilogia.
Os que defendem o indefensável nono filme vão dizer “não precisa pensar sobre tal coisa, tem que comprar a história para aproveitar”. Isso se chamaria licença poética ou suspensão de descrença, entretanto, para isso funcionar, uma solução precisa ser apresentada, como aconteceu em Vingadores: Ultimato (Avengers: Endgame, 2019), outro filme gigante de estúdio. Eles explicam o que precisa acontecer para a viagem no tempo funcionar, é uma solução para um conflito no roteiro. A solução funciona, mas “não pense muito sobre ela”, porque se pensar, você vai se complicar e achar um furo e aí a experiência não vai funcionar, mas HÁ UMA SOLUÇÃO APRESENTADA. Em “A Ascensão Skywalker” não há soluções para a regressão do Kylo, para a regressão de Poe, a regressão de Finn e por aí vai. É tudo feito com o objetivo de agradar a todos, principalmente os fãs tóxicos que acham que um filme deve ser feito de acordo com as expectativas deles. Eu nunca vi um estúdio se render dessa forma ao público, uma clara evidência de amadorismo.
Quando um profissional precisa de um conselho diante de uma obra, ele vai pedir a opinião de uma ou mais pessoas que saibam tanto ou mais do que ele sobre determinado tema ou produto. Eu, como roteirista, não vou pedir a opinião de um não-roteirista sobre uma obra, uma vez que eu saberia mais do que ele sobre o que fazer, qual é o meu ganho nisso? É necessário contra-argumentar para chegar a algum lugar, e só com conhecimento se pode argumentar. A Disney basicamente pediu a opinião de fãs, de amadores sem conhecimento, sobre como fazer um filme. A Kathleen Kennedy e o J.J. Abrams terem concordado com isso só esclarece que eles não têm respeito pelo trabalho do antecessor e que também devem ser culpados — muito culpados — pelo resultado.
Como cereja num bolo terrível, o desrespeito com a atriz Kelly-Marie Tran me deixou nauseado. Por mais que não gostem da personagem Rose como eu gostei, ou não entendam a função (importante) dela na trama de “Os Últimos Jedi”, é necessário entender a covardia como trataram ela. A atriz foi ofendida por fanáticos abreviados no Twitter, no Instagram — ofendida por aparentemente “não ser bonita”, ou por ser de descendência Filipina, ou por ser mulher; a internet, terra de ninguém, um reflexo levemente mais anarquista de uma sociedade nojenta, onde os covardes habitam com avatares falsos. Kelly abandonou as redes-sociais e por muito tempo sofreu com isso. A Disney/Lucasfilm, empregadora dela, deveria ter batido o pé para defender sua funcionária, deveria ter feito a coisa ética, mas não…eles se renderam aos fãs, tiraram ela da trama e praticamente ignoraram tudo o que aconteceu em “Os Últimos Jedi”.
Se acontecesse comigo, eu pediria demissão e falaria tudo para o primeiro veículo de mídia que batesse na minha porta. Mas ela é muito mais forte que eu, ela se portou como a profissional que é, conquistando os tapetes vermelhos e se colocando acima das críticas ridículas — até de John Boyega, que de certa forma culpou a atriz por ser casca fina com os fãs.
Tudo isso, seja dentro da trama do último filme ou nos bastidores de sua produção, vai exatamente contra o que Star Wars representa.
Acredito que, assim como aconteceu com “O Império Contra-Ataca”, “Os Últimos Jedi” receberá sua aclamação por parte do público com o tempo (os críticos já amam). Enquanto isso, eu tenho a certeza que “A Ascensão Skywalker” é o pior filme de uma saga que tem um lugar especial no meu coração.
Sim, é pior que “O Ataque dos Clones”, porque mesmo em suas terríveis falhas de execução, o filme de George Lucas faz sentido e foi ousado ao tentar criar um mundo totalmente digital (através de recursos como o CGI, que na época era bem novo). Os avanços conquistados nesse filme, como ser o primeiro filmado 100% em câmera digital (props para a Sony), abriram o caminho para filmes maiores e menores, e proporcionaram um cinema mais autoral, com mais personalidade anos depois (não haveria câmeras como a RED sem a trilogia prelúdio, nem Alexa, e sem elas não veríamos os mesmos filmes incríveis de Steven Soderbergh, Barry Jenkins e David Fincher, por exemplo).
“A Ascenção Skywalker” não faz sentido e também representa o pior que o fanatismo nerd pode oferecer. Nada mudou de dezembro pra cá.
Para mais análises de ambos os filmes, ouça o episódio 18 de Um Podcast Que Cai.