A arquitetura de uma escolha em PARASITA

Nate Buzelli
6 min readFeb 22, 2020

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Cena inicial de Parasita apresenta uma família desesperada.

“Por que gostei tanto desse filme?” é o que sempre me pergunto quando reflito sobre filmes pelos quais tenho muito afeto. A resposta para essa pergunta muda de acordo com o tempo e com a forma em que adquirimos conhecimento e cultura, com a forma que aprendemos a olhar para a sociedade ao nosso redor. Quando vi Era Uma Vez em Hollywood (Quentin Tarantino, 2019) e O Irlandês (Martin Scorsese, 2019), eu entendi em pouco tempo porque cada um desses filmes conseguiu me impactar de maneira mais profunda, e parte da resposta sempre estará ligada a experiência cinematográfica, por mais que tentamos racionalizar.

A dramaturgia é mais fácil de racionalizar, porque antes de filmada ela é escrita; em muitos casos — que dependem também do autor da obra — acabamos analisando a trama e o desenvolvimento da história (o roteiro) em vez da narrativa, definida pelo diretor e construída por tantas pessoas dentro de uma produção. Tarantino sempre será analisado pela dramaturgia, porque ele é mais famoso por seus roteiros, enquanto Scorsese sempre será desconstruído através da forma; por suas escolhas ousadas e inteligentes de como filmar bons roteiros — resumindo, é muito mais fácil explicar e entender porque o roteiro de Bastardos Inglórios (Quentin Tarantino, 2009) funciona com tanta eficiência do que a importância da narração em off de Silêncio (Martin Scorsese, 2016).

Bong Joon-ho há anos oferece filmes que causam impacto, ainda que não consigamos racionalizar esse impacto à primeira instância. A dramaturgia é diferente, foge de estruturas tradicionais e de personagens táticos (que cumprem funções específicas) — os aspectos de sua narrativa são complexos e muitas vezes precisamos ver mais de uma vez para absorver tudo. O que David Fincher fez em Zodíaco (2007), Bong tinha feito em Memórias de um Assassinato (2005), mas de uma forma muito mais subjetiva e multi-dimensional: o filme de 2005 é assustador e sensível, crítico e ainda afetuoso; esses sentimentos contraditórios precisam co-existir para caracterizar o que há mais de contraditório no mundo: o ser humano, basicamente o que move os filmes de Bong. Admito que gosto mais de “Zodíaco”, porque ele assume o fantasioso dentro de sua narrativa e transforma uma história real num filme de suspense que deixaria Hitchcock orgulhoso. As propostas de ambos os filmes são diferentes; um é sobre obsessão e outro sobre cicatrizes.

Cicatrizes geram reflexões e muitas vezes aprendizados; aprendizado gera escolha e escolha gera emoção (direta ou indiretamente). A parte fundamental desse ciclo é a escolha; a linha humanista da psicologia vai defender, basicamente, que você é responsável por cada sentimento que sente e por isso é culpado por suas frustrações e problemas — você precisa achar uma forma de evitar que isso aconteça, individualmente, sem se condicionar ao ambiente ao seu redor. Jean-Paul Sartre, filósofo francês que influenciou essa vertente, disse: “o homem nasce livre, responsável e sem desculpas”; para ele, “não escolher já é uma escolha”.

Dentro desse contexto, olhemos para dois gêneros: a tragédia e o melodrama. No primeiro, o nosso protagonista/herói tem um destino cravado — forças sobrenaturais exercidas sobre ele impedem que ele consiga fugir de seu futuro ou negá-lo. Ainda assim, é a escolha errada que pontua o destino do herói, o famoso “erro trágico”. Para desconstruir a ideia da escolha dentro da tragédia, podemos olhar, por exemplo, o filme Looper (Rian Johnson, 2012), em que um matador é enviado de volta no tempo para assassinar a criança que viraria um ditador sanguinário no futuro (nesse caso, o futuro funciona como oráculo), até que a versão mais jovem desse matador (presa no passado) percebe que é justamente a tentativa de matá-lo que transformaria a criança para sempre. O destino cravado pelo futuro é alterado por uma escolha do protagonista — o erro trágico se tornara, então, um “acerto nada trágico”.

No melodrama, as coisas funcionam de forma diferente; o que exerce uma força sobre os personagens é a sociedade, os costumes da época. Em A Vida Invisível (Karim Aïnouz, 2019), as protagonistas se vêm afundadas em frustrações porque elas estão sempre à mercê dos homens; são obrigadas a fazer escolhas que não necessariamente gostariam porque não existem opções melhores. O melodrama, apesar de ser um gênero muito ligado à estética, passou por diversas mutações ao longo do tempo, para desaparecer em filmes mais autorais ou para se manifestar em histórias que pareçam muito mais complexas (vejam os filmes de James Gray). Se olharmos para Parasita como um milk-shake, o melodrama seria o leite — não se preocupe, eu vou explicar abaixo.

“Parasita” tem muito humor — como todos os filmes de Bong — mas é um drama. É um drama moderno construído através de vários elementos de vários gêneros diferentes (um shake); o “drama familiar em meio às forças externas e injustas da sociedade” é característica marcante do melodrama e parte fundamental do filme (por isso é o leite), o final trágico, em que os personagens se tornam vítimas de suas próprias ações bebe muito da tragédia clássica, e também tem o plano mirabolante para infiltrar a família Kim na casa da família Park, praticamente tirado de filmes de assalto (heist movies). Por aí vai. A estética bem humorada de Bong ajuda a esconder o cinismo na narrativa, a ideia de que os humanos que passam necessidades e desejos acabam se movendo pelo instinto em vez de pela racionalidade. O nome do filme que remete a um inseto e os momentos em que o patriarca da família Park se mostra incomodado com o cheiro das pessoas mais “humildes” ao seu redor, como se todos fossem ratos de esgoto, deixa claro que um dos objetivos do diretor é questionar a racionalidade dentro das escolhas tomadas por cada personagem.

O ponto de Jean-Paul Sartre faz sentido se considerarmos uma sociedade igualitária, em que todos questionamos racionalmente a escolha a ser tomada antes de toma-la. Numa sociedade injusta em que as pessoas nascem com certa condenação, alegar que as escolhas são incondicionáveis é balela; a família Kim quer algo que não pode ter, eles querem ser pessoas que não podem ser, porque é difícil e nada proveitoso viver sem dinheiro, principalmente quando o que move uma nação no final do dia é o consumo. Muitas vezes se olha para o funk ou para o hip-hop norte americano e se questiona a ostentação; ostentar é imaginar uma realidade paralela, é um escapismo, todos nós ostentamos e se tivéssemos a mesma escolha que a família Kim teve, quantos fariam diferente? Como o filme mostra, eles também não foram os primeiros.

A ilusão da meritocracia, exposta de forma tão explícita no final quanto o mito do herói é exposto no final de Rastros de Ódio (John Ford, 1956), nos leva novamente à metáfora sobre capitalismo inserida na arquitetura do filme. Quando se é privilegiado, você pode construir a casa que tiver em mente e bloqueá-la com os muros que quiser, mas ela será desejada por todos visto que ela é vendida como símbolo de sucesso, e para atingir esse sucesso, todas as escolhas precisam ser corretas (às vezes seria bom escolher os pais também). É o mesmo que considerar que os maiores escritores da história são europeus, quando eles nascem com um acesso gigantesco à cultura, ao tempo em que no Brasil, na África do Sul, na Tailândia e por aí vai, você é obrigado a correr atrás de tudo sozinho. Não é justo comparar.

Os personagens se arrependem no final? Sim, porque eles entendem através da dor como a riqueza e o status de poder corrompe. Uma cicatriz ficou com a família que sobreviveu (literalmente) e os fez “aprender”, aprender a agir conforme o que a sociedade diz que é certo — como um animal condicionado após ser castigado pela escolha errada. O patriarca fica preso na casa, que muda de donos mas continua desejada, mesmo após algumas mortes, e cabe ao filho salvar o pai novamente (seria acreditar nisso seu erro trágico?). Para fazer isso ele precisa enfrentar a tragédia e o melodrama, transcender os gêneros e alcançar a fantasia.

Cinema inspira, mas às vezes o cinema nos propõe jornadas imprevisíveis que acabam num espelho (e é por isso que eu gosto tanto de “Parasita”). Felizmente, a arte existe e resiste em todo o planeta, e cabe a nós escolher aquela que nos move na direção certa.

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Nate Buzelli
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Written by Nate Buzelli

Tentando abrir uma janela para perspectivas não convencionais. Isso talvez seja um perigo. Graduado em cinema, escrevendo sobre cultura e cotidiano.

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